Quinta-feira, 15h21. Em meio ao calor de 27 graus do inverno goiano, jovens da UNE se concentram atrás de um trio elétrico. A música eletrônica genérica e o forte cheiro de maconha pairam igualitariamente entre bandeiras de grupos partidários rivais. Estamos no segundo dia do 52o Congresso Nacional da União Nacional dos Estudantes (Conune), e a passeata que deveria percorrer os 3 quilômetros entre o Centro de Convenções de Goiânia e a Praça Universitária, próxima à Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), está parada. Das caixas de som vem um anúncio: “Atenção, Pedro Cometi, vulgo ‘Peidinho’, dirija-se ao trio elétrico. Pedro Cometi, vulgo ‘Peidinho’, dirija-se ao trio elétrico”.


O microfone passa às mãos de uma dirigente da União da Juventude Socialista (UJS), grupo ligado ao PCdoB, que tenta esquentar os ânimos. “Cadê a galera capixabaaaaa?” Cinquenta respondem. “Cadê o pessoal do Paranááááá?” Trinta respondem. “E do Amazonaaaaas?” Uma menina estrebucha e agita sua bandeira.


Então o som começa a falhar. A dirigente insiste: “Pessoal! Aq… frente vai… Sonho! Pess… fundo… berdade! No 3! U…! Dois! …!” Os estudantes se entreolham em busca de algum vestígio de instrução. Em vez disso, o que encontram é um mendigo maluco que abre a multidão como um Mar Vermelho brandindo um pedaço de pau de 1 metro e meio contra inimigos imaginários. Na recém-aberta clareira, sozinho e estrábico, o homem grita e desafia os estudantes. Ninguém respira. Uma vez convencido de que não estão contra ele, larga o pedaço de pau e se perde na multidão. O mendigo não sabe, mas acaba de protagonizar o gesto mais combativo do congresso, que entre 13 e 17 de julho tomou ruas e praças de Goiânia.




A “uNEBRAS”


A União Nacional dos Estudantes foi fundada em 1937 e sempre demonstrou preferência por governos populistas de esquerda. A organização teve papel importante na repulsa ao fascismo na década de 1940, no apoio ao nacionalismo e à criação da Petrobras, em 1953, e na posse de João Goulart, em 1961. Durante o regime militar, mesmo perseguida e ilegalizada, a UNE teve seu período mais brilhante e combateu a ditadura nas ruas. Em 1968, o ano mais marcante no confronto entre a UNE e os militares, o estudante Edson Luís foi assassinado no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, e o Congresso da UNE em Ibiúna (SP) foi invadido. Mil estudantes foram presos – entre os quais José Genoino e José Dirceu, este à época presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. Foi só ao fim da década de 1970, com o enfraquecimento da ditadura, que a UNE voltou a se estruturar. Em 1979, conseguiu realizar seu congresso de reconstrução em Salvador. Engrossou a campanha Diretas Já em 1984 e voltou à legalidade em 1985. Levou os caras-pintadas às ruas contra Collor em 1992 e várias vezes nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2001).


Já com o PT a relação sempre foi amistosa: a UNE apoiou as candidaturas do partido à Presidência em 2002, 2006 e 2010. Sob o governo Lula, a entidade tornou-se praticamente uma estatal recebendo dinheiro público para organizar seus congressos nacionais. Um dos últimos atos do ex-presidente Lula antes de passar a faixa a Dilma Rousseff foi liberar 44,6 milhões de reais para a UNE reconstruir sua sede na Praia do Flamengo, no Rio, incendiada e demolida na ditadura militar.


As estatais também colaboram com a entidade. A Petrobras contribuiu com 100 000 reais em cada um dos dois últimos Conunes, em 2007 e 2009. Neste ano, entrou de novo como patrocinadora majoritária do evento, ao lado da Eletrobras e de quatro ministérios: Turismo, Saúde, Educação e Transportes (que, enquanto o Congresso acontecia, perdeu o ministro e uma dúzia de funcionários graças a escândalos de corrupção). O Governo de Goiás e a Prefeitura de Goiânia forneceram ginásio e escolas como alojamentos, ambulâncias e banheiros químicos. Até o fechamento desta edição, tanto Petrobras como UNE se esquivaram de revelar o valor do patrocínio. Sabe-se, no entanto, que este Conune contou com 4 milhões de reais de dinheiro público, além da participação da patrocinadora minoritária Caixa Econômica Federal, de cerca de 20 000 reais.


Augusto Chagas, 29 anos, estudante de sistemas de informação na USP (sua terceira faculdade incompleta em dez anos de vida acadêmica) e presidente da UNE até o final do congresso, se defende da acusação de peleguismo. “O que a UNE recebe dos patrocinadores é valor publicitário porque eles expõem as marcas no Congresso”, argumenta. As marcas, no caso, estavam apenas no cartaz de fundo de uma palestra, alguns pôsteres menores no mesmo auditório e o logotipo da Petrobras no site da UNE.


Pergunto se a ausência de críticas à corrupção no governo federal por parte da UNE é mera coincidência. “Sempre nos posicionamos quando aparecem escândalos”, rebate Chagas. Então pergunto se eles se mobilizaram contra o mensalão. Ele ignora a pergunta e declara que não dá para exigir que a UNE resolva o problema da corrupção no Brasil. Digo que ninguém está cobrando que a UNE resolva o Brasil, mas que é estranho o silêncio dos estudantes sobre isso. Ele conclui: “A UNE cobra. Mas, com toda a legitimidade do mundo, a UNE escolhe suas prioridades nos fóruns”. Protestar contra a corrupção não está entre as prioridades da organização.


Lula, o rockstar


São 10h34 da manhã do segundo dia, e o Centro de Convenções de Goiânia reverbera os gritos de pelo menos 500 jovens. O andar de baixo da plateia é ocupado pela “situação”, que reúne filiados de determinadas tendências do PT, do PMDB, do PPL e, principalmente, do PCdoB. Já o mezanino é ocupado pela “oposição”, que amontoa menos de um terço do total de estudantes e é dividida entre membros da tendência Articulação de Esquerda do PT e um grupo pequeno, mas ruidoso, ligado ao PSOL. Todos estão ali por um só motivo: a anunciada presença do ex-presidente Lula, estrela maior deste Conune.




O atraso de 1 hora e meia é aliviado por palavras de ordem, olas e batidas de tambor. “Estudante de luta, qual é sua missão? 10% do PIB para a educação!”, canta a situação. “Partido Comunista, pelego e ruralista!”, brada a Articulação de Esquerda. “O Palocci é do PT!”, relembra o grupo do PSOL. Tento me aproximar dos estudantes e compreender quais são os grupos que concorrem à presidência da UNE. Não é fácil. Meu instinto de entrevistar mulheres bonitas se mostra ineficiente: de modo geral, quanto mais atraente a militante, menos politizada ela é. Pergunto a uma menina da Articulação de Esquerda quais são as diferenças entre o seu movimento e a situação, representado pela UJS. Ela responde: “Não sei!” E ri. Eu devia ter antecipado a resposta pela tatuagem de borboleta no seu cofrinho.


As palavras de ordem se alternam até que enfim os palestrantes sobem ao palco. A mesa é ocupada por reitores de universidades particulares, políticos locais, pelo ministro da Educação, Fernando Haddad (que Lula pretende lançar como candidato à prefeitura de São Paulo no ano que vem), e por membros da diretoria da UNE, entre eles o então presidente Augusto Chagas. Mas a plateia só tem olhos para o ex-presidente. Os estudantes vão à loucura. Gritos de “Lula, guerreiro do povo brasileiro” tentam abafar o canto da oposição: “Lula e Dilma, que papelão, cortaram verba na educação!” Luiz Inácio, por sua vez, parece distante. Durante a execução do Hino Nacional e os discursos que antecedem o seu, o ex-presidente mantém uma expressão melancólica, constipada.


Seu rosto só se ilumina quando toma o microfone. Ele espera o fim do frisson e começa. Diz que estava com saudade. Ovação. Diz que é apaixonado por microfones. Gargalhadas. Garante que Dilma estaria ali se pudesse e afirma que ele próprio deveria estar em uma viagem à Tunísia e ao Egito para palestras sobre democracia, mas que preferiu a UNE. Ovação. Ataca a elite, diz que nenhum dos depredadores da USP era pobre. Ovação. Ataca a imprensa. Ovação. Chama um jornalista de babaca. Ovação. Lula é ovacionado muitas outras vezes antes de concluir o discurso: “Do fundo do coração, muito obrigado por tudo o que vocês fizeram no meu mandato. Muito obrigado por tudo o que eu tenho certeza que vocês vão fazer pela nossa querida presidenta Dilma Rousseff. Muito obrigado pela compreensão que vocês tiveram com o ministro Fernando Haddad todo este tempo. E muito obrigado por vocês existirem”, finaliza. Então ele é cercado por seguranças, assessores e membros da mesa feito um pedaço de pão em um aquário.


Na borda do palco, os mais entusiasmados o aguardam. Dois deles tentam escalar o tablado, mas são frustrados por um assessor com um safanão armado na mão direita. Quando o ex-presidente finalmente se aproxima dos fãs, eles parecem querer comê-lo vivo. Estou no meio da turba, mas, elite, imprensa e babaca que sou, Lula me ignora quando solicito uma entrevista. Mãos se estendem tentando tocá-lo, algumas meninas choram de emoção. Quando ele vira as costas, puxado pelos seguranças, uma jovem divide sua emoção com a amiga: “Ai, meu Deus, ele segurou a minha mão por um tempão! Um tempão!” Quando eu olho de volta para o palco, Lula desapareceu.


Oposição e situação


São 22h30 do segundo dia, e a Praça Universitária, ponto final da marcha dos estudantes e epicentro do congresso, se enche de jovens de banho tomado. A 8 quilômetros dali, o grupo do PSOL (de oposição à atual diretoria) está esperando a água dos chuveiros voltar. O alojamento designado pela UNE à oposição é um ginásio decrépito em um bairro deserto e remoto. Em barracas e redes espalhadas por um ginásio apertado, os 120 estudantes descansam, conversam e tomam cachaça. No banheiro de chuveiros frios e coletivos, três rapazes de toalha esperam a caixa-d’água encher, seus mamilos pré-pubescentes espetando o escuro. Alguns ainda têm pinturas tribais no rosto.


Depois de convencer uma das líderes do Vamos à Luta (tendência do PSOL) de que não sou um tal de Léo que faz ciências sociais, ela concorda em conceder uma entrevista. Bárbara Sinedino tem 24 anos e faz teatro na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela acredita que a UNE não se mobiliza contra o governo porque a UJS só tem “pelegos”. Perguntada sobre por que os filiados do PCdoB conseguem se manter no poder, denuncia um esquema de criação de delegados fantasmas para engrossar o eleitorado.


A votação da diretoria da UNE é indireta desde a reconstrução da entidade, no final da década de 1970. Bárbara acredita que Lula é um dos maiores problemas para os movimentos sociais brasileiros porque consegue mantê-los estáticos com sua popularidade. Também acredita que entre quatro lonas de barraca vale tudo dependendo da companhia.


Alojada em uma escola bem mais ampla e mais bem estruturada a um quarteirão da Praça Universitária, a delegação da UJS não tem problema com os chuveiros, o que fica claro quando sou interpelado por duas meninas bem vestidas, cheirosas e maquiadas em busca de uma tomada. Sugiro que elas procurem nas paredes, que é onde geralmente se encontram tomadas. Elas riem. Mais tarde eu as encontro secando o cabelo ao lado de um bebedouro. Um sujeito toma água e reclama: “Porra, vocês desligaram a água gelada pra ligar o secador!” “Ah, é rapidinho”, diz uma delas.


Conversamos. Elas são de Cascavel (PR), têm 18 anos, uma se chama Bruna e a outra, Andressa. Afirmam que são filiadas à UJS, mas não parecem dispostas a falar de política. Pergunto se elas vieram para a votação das plenárias. “Viemos pra votar, mas também pra curtir”, declaram.


O sentimento é compartilhado por muitos dos estudantes presentes, delegados que foram eleitos em suas universidades para representar os estudantes nas votações. Dos quase 6 mil delegados que vieram a Goiânia, cerca de 4 200, apenas, retiraram seus crachás para votar – pagando até 200 reais para fazê-lo. Desses, 3 181 estavam sóbrios ou acordados o suficiente para a plenária final, realizada na manhã de domingo, último dia de congresso. A chapa Movimento Estudantil Unificado para as Mudanças do Brasil, formada principalmente pela coalizão das duas maiores forças da UNE, a UJS e a Kizomba (da linha Democracia Socialista do PT), levou 75,5% dos votos. A Oposição de Esquerda, da Articulação de Esquerda do PT, levou 18,5% dos votos. A Mude – Movimento UNE Democrático, do PSOL, levou 5,8%. E a Por uma Nova UNE, do PSDB (cujos integrantes não foram localizados pela reportagem), conseguiu 5 votos, 0,2% do total. A presidência da UNE ficou nas mãos do UJS Daniel Iliescu, 26 anos, aluno de ciências sociais na UFRJ. O resultado era tão previsível que, dois dias antes da eleição, Daniel já me havia sido apresentado como “o novo presidente da UNE”.




Gente maluca, clima de paquera


É 1h27 da madrugada do terceiro dia, e a Praça Universitária ferve. Livres de bandeiras, camisetas políticas e pinturas tribais no rosto, os estudantes se embebedam com chope Klaro (o litro sai por 5 reais e tem gosto de milho) e vodca Rustoff (direto das garrafas plásticas). A maioria dos presentes dança nas tendas montadas pelos partidos. Como a praça não é muito grande, há uma constante cacofonia de estilos musicais que inclui rap, funk carioca, Bezerra da Silva, Raul Seixas, pagode, música eletrônica e muitos gêneros indecifráveis.


Uma loira razoável me olha fixamente, duas outras moças decidem dançar precisamente no meu campo de visão, e uma terceira vem puxar papo. Tenho tempo apenas para descobrir que ela é de Mato Grosso do Sul e esquecer seu nome quando um grandalhão estaca do seu lado, me olha com cara de mau e exibe o bíceps. A Mato Grosso do Sul tem algum rolo com ele. Me esquecem. A 3 metros dali, um sujeito gordo com boné e camiseta do Metallica cambaleia até uma cadeira e vomita roxo. Um engraçadinho empurra uma mesa de plástico até ele para fazê-lo vomitar em cima dela, mas ele a repele debilmente e desmaia sentado.


Um velho careca com cara de Ney Matogrosso doente se aproxima e pergunta se estou anotando o nome de todo mundo que passa por mim. Digo que não. Ele parece aliviado. Pergunto quem ele é. Enigmático, ele responde: “Eu sou nada…”


Nos próximos 5 minutos, sempre cuspindo perdigotos no meu rosto, ele conta que recebeu da Unesco o título de Sportsman for Peace por ter pedalado por dois anos em defesa dos direitos humanos. Ele ainda reproduz uma conversa supostamente travada entre o papa João Paulo 2o, a política irlandesa Iris Robinson e o antigo secretário-geral da ONU Kofi Annan a respeito dele. Em italiano. Compreendo que o sujeito é completamente louco. Ele só sossega quando aceito fazer parte da produção do filme sobre ele mesmo que, afirma, realizará com os 10 milhões de dólares que levantou graças à Lei Rouanet.


Mal me livro do maluco e um hippie para ao meu lado, olha para meu bloco de notas e grasna (ele não ri, grasna). “Deve ser estranho ser observado observando os outros…”, diz. Respondo que não, não é. Ele vai embora.


Sou então interpelado outra vez. Agora por um homem de 56 anos que pergunta onde fica a fila do chope. Ele se diz defensor público do estado de Goiás e antigo filiado do Partido Comunista Brasileiro (PCB). “Isso aqui é uma vergonha. A UNE faz eleições indiretas, senta do lado do presidente e fala em democracia e independência? No Congresso de 1982 não era assim! Era 60% política e 40% putaria. Hoje é, no máximo, 20% política”, protesta. Ele me oferece um cigarro mentolado e prossegue: “O foda é que naqueles tempos só tinha baranga no PCdoB e no PCB. No PT, não. Elas bebiam, fumavam um, e todo mundo metia!”


Dou corda, e conversamos por meia hora, ao fim da qual ele insiste, seriíssimo, que eu leia os “Protocolos do Priorado dos Sábios de Sião”, um documento histórico antissemita forjado por membros da corte do czar Nicolau 2o para convencê-lo de que a modernização da Rússia era na verdade uma tentativa de dominação mundial pelos judeus. O documento foi usado para atacar os bolcheviques na Revolução Russa, o que torna ainda mais absurdo o fato de um ex-partidário do PCB levá-lo a sério. Mas, enfim, tudo é meio absurdo neste Conune.




Depois que ele se vai, noto que o gordo com camisa do Metallica está imóvel há 15 minutos. Pergunto-me se ele está vivo. Ele cospe em sua própria perna e prova que, sim, ainda respira. Mas só em tese. Como o movimento estudantil.